Tradução falha ao chamar de monstro ser mitológico extraordinário

Pesquisa mostra imprecisão na tradução para “monstros” de criaturas extraordinárias presentes em poemas da Grécia Antiga.


Das narrativas mais antigas às mais recentes, é o personagem heroico quem tem sido o protagonista. Entretanto, o lugar dos heróis nas histórias só existe em contraposição ao papel dos vilões ou, mais especificamente, dos monstros. Um trabalho da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP retoma a importância dessas criaturas ao analisar clássicos gregos e colocar em xeque a noção de que alguns dos mais conhecidos vilões da literatura tenham sido “monstros” na concepção moderna do termo.

Para investigar os seres considerados monstruosos, bem como os termos geralmente traduzidos por “monstro” presentes em poemas da tradição de poesia hexamétrica arcaica (assim chamada por ter o hexâmetro como verso), a pesquisadora Camila Aline Zanon se debruçou sobre a Teogonia, de Hesíodo, o Hino Homérico a Apolo e a Odisseia, de Homero.

Seu estudo acabou por demonstrar a imprecisão da tradução para “monstro” dos termos usados em grego para essas criaturas, resultando na tese de doutorado Onde vivem os monstros: criaturas prodigiosas na poesia hexamétrica arcaica, vencedora na categoria Linguística, Letras e Artes do Prêmio Tese Destaque USP 2017.

 

Em busca do extraordinário

Formada em Letras pela USP, Camila se especializou em grego antigo, o que a levou a redigir um mestrado que caracterizou relações entre achados arqueológicos e o célebre poema Ilíada, de Homero. Entretanto, foram os anos que separaram seu mestrado do doutorado que fizeram amadurecer a ideia de um tema de pesquisa ainda mais específico.

Após o mestrado, “fiquei três anos trabalhando no mercado editorial”, relembra ela. Fã de literatura infantojuvenil, Camila atuava revisando material didático enquanto buscava um caminho para retornar à academia.

Em conjunto com seu futuro orientador, o professor Christian Werner, a pesquisadora chegou a um tema menos abordado que evocava aspectos da literatura infantojuvenil e letras clássicas. “Foi aí que surgiram os ‘monstros’, um tema muito pouco estudado por especialistas da área”, revela Camila.

A análise dessas criaturas teve como foco o modo como elas eram descritas e qual o papel que desempenharam nas narrativas contidas nesses poemas. “Comecei investigando minhas fontes textuais, os três poemas”, lembra ela. Foi a partir do Hino Homérico a Apolo que a autora formalizou uma metodologia de trabalho com que pôde identificar as primeiras acepções acerca dos tais “monstros” descritos no texto. “Percebi logo aí que geralmente nas traduções para línguas modernas havia um duplo padrão para se traduzir termos usados em grego para essas criaturas”, conta.

Logo no começo do trabalho, Camila notou a presença de duas palavras (teras e pelor) que hoje são traduzidas como “monstro”, mas que em seu contexto original podiam se referir a qualquer elemento que fosse “extraordinário” ou “espantoso”.

Ao investigar como essas mesmas palavras foram traduzidas, a pesquisadora enxergou um padrão. O que era colocado como extraordinário na língua original, se tornou monstruoso a partir de suas traduções e reinterpretações. “Mas por quê?”, indagou ela, já que no texto em grego não havia nenhuma indicação que existia um duplo padrão de sentido nesses termos.

“Nos poemas de Homero e Hesíodo, essas mesmas palavras podem se referir aos monstros e aos heróis”, esclarece.

“Essas palavras são usadas em contexto de vaticínio, quando um adivinho interpreta um sinal enviado pelos deuses”, esclarece ela. Na literatura, exemplos aparecem “como quando uma ave é vista carregando um animal como uma cobra, ou quando uma cobra de tamanho anormal ataca uma ave”, ilustra a pesquisadora. Para os gregos, esses eventos eram considerados mensagens enviadas pelos deuses, que precisavam ser interpretadas pelo adivinho. As mesmas palavras que designavam esses acontecimentos também eram utilizadas para as criaturas que hoje nos referimos como monstros.

 

Um mundo que ainda não desencantou

Conforme a tese, a categoria “monstro” como entendida no mundo moderno era inexistente para essa poesia arcaica, e tal fato tem implicações na compreensão moderna dessas criaturas, isto é, elas devem ser percebidas como integrantes de um universo que não separa o sobrenatural e o divino nos mesmos termos que o faz a sociedade moderna ocidental. No contexto antigo, essas criaturas eram encaradas como algo incrível.

Para a autora do estudo, é necessário compreendermos essas criaturas “sob o ponto de vista da tradição que as criou ou as incorporou e ressignificou”. Camila reforça também que a interpretação presente dos tais “monstros” faz parte de um sistema de pensamento em um mundo ainda “não desencantado”, no qual a realidade empírica e a esfera divina estavam imbricadas.

Utilizando um conceito de Max Weber, o chamado “desencantamento do mundo” causado pela valorização do conhecimento científico, a especialista explica que, diferente da nossa visão atual sobre a realidade, naquelas poesias “o mundo era cheio de deuses”. Concebidos em diferentes momentos históricos, resultado de um longo processo de transmissão de histórias, esses textos e suas criaturas “só podem ser definidos de acordo com o contexto histórico que os produziu”, finaliza.

A tese completa pode ser acessada neste link.

Esta reportagem foi publicada originalmente no Jornal da USP, em 20 de outubro de 2017.

Foto de Pat Whelen na Unsplash

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